quinta-feira, 17 de junho de 2010

Menção honrosa 2010

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PODERÁ A EUTANÁSIA SER MORALMENTE CORRECTA?
Daniela Filipa Videira Adelino
Escola Secundária com 3º ciclo de Valpaços
10º C – Filosofia

Este trabalho discute o problema de saber se a eutanásia é eticamente permissível ou não. Devido a diversificação de tipos de eutanásia, neste ensaio vou abordar um só tipo: eutanásia voluntária. A posição aqui defendida é que a eutanásia voluntária é eticamente permissível.

A eutanásia provém do grego ευθανασία (ευ "bom" e θάνατος "morte”) e é a prática pela qual se antecipa a morte de um doente incurável de maneira controlada e assistida por um especialista(1). A eutanásia pode-se classificar quanto ao tipo de acção e quanto ao consentimento do paciente. Quanto ao tipo de acção pode dividir-se em eutanásia activa e eutanásia passiva. A eutanásia activa é quando se administra uma substância que provoca directamente a morte sem sofrimento do doente, requerendo a intervenção directa e consciente do médico. A eutanásia passiva é quando o médico não executa determinado tratamento ou procedimento clínico, ou seja, quando o médico permite que o paciente morra retirando-lhe um certo tratamento de suporte à vida. Quanto ao consentimento do doente, o tipo de eutanásia pode-se dividir em eutanásia voluntária, não voluntária e involuntária. A eutanásia voluntária aplica-se quando o doente se encontra em perfeitas condições mentais e ainda possui vontade própria para pedir conscientemente que lhe retirem a vida. A eutanásia não voluntária aplica-se a casos de doentes que estão incapacitados de tomar qualquer decisão (como por exemplo, um menor de idade ou um recém-nascido). Nestes casos o pedido de eutanásia é requisitado pelos familiares mais próximos do paciente e este não manifesta a sua posição em relação a ela. A eutanásia involuntária ocorre quando as pessoas ou doentes são mortos contra a sua vontade ou sem o seu consentimento, desejando continuar a viver. Esta prática é uma forma de o médico impedir que o paciente continue a sofrer e se torne num “peso” para todos. (2)

Este assunto vem sido debatido há muito tempo e levanta várias questões como: o facto de a morte ser activamente provocada, em vez de ter ocorrido em consequência dos tratamentos de suporte à vida terem sido recusados ou retirados, é moralmente relevante? Poderá haver um direito de matar ou um direito de morrer? Deve-se usar sempre todos os meios de suporte à vida disponíveis, ou há certos meios "extraordinários" ou "desproporcionados" que não é necessário empregar? O facto de a morte do doente ser directamente desejada, ou acontecer apenas como uma consequência antecipada da acção ou omissão do agente, é moralmente relevante?

Para tentar responder a estas questões e à questão central “poderá a eutanásia ser moralmente correcta?” existem duas teorias importantes que precisamos ter em conta: a teoria de Kant e a teoria utilitarista.

A ética kantiana está centrada na noção de dever. Kant defendia que para um acto ter valor moral teria de ser efectuado sem se recorrer a inclinações, sentimentos, ou benefícios pessoais, ou seja sem se pensar no nosso interesse próprio. Assim, a motivação de uma acção seria muito mais importante do que a própria acção e as consequências. Logo, para Kant a moralidade é uma questão de intenção – uma acção é moralmente correcta se tiver sido praticada com a intenção de cumprir o dever. E porquê valorizar a intenção e não as consequências? Kant para responder a esta questão dizia que só é razoável ser moralmente responsável por coisas sobre as quais se exerce algum controlo. As consequências das acções estão muitas vezes fora do nosso controlo. Logo, as consequências não podem ser cruciais para a moral. Portanto: a moral terá de se apoiar na vontade, numa vontade boa – uma vontade que quer agir por sentido do dever.

Mas qual é o nosso dever? E como sabemos que é o nosso dever. Para Kant, enquanto seres humanos racionais temos certos deveres. Estes deveres são categóricos, ou seja absolutos e incondicionais. E por que razão serão absolutos e incondicionais? Porque derivam de um princípio que todos os seres racionais têm que aceitar, só porque são racionais. Esse tal imperativo categórico é “dado” pela frase: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”(3) , ou seja, este imperativo categórico fornece-nos, na prática, um critério para o agir moral. Se queres agir moralmente, (isto é, para Kant, racionalmente) – o que aliás tu tens de fazer – age então de uma maneira realmente universalizável. Este imperativo categórico tem duas fórmulas: a fórmula da lei universal e a fórmula de fim em si mesmo. A fórmula da lei universal centra-se na imparcialidade e na universalidade. Diz-nos para agirmos apenas segundo uma máxima, que de tal forma possamos ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. A fórmula do fim em si mesmo, centra-se em reconhecer a humanidade, ou seja, pessoas com vontade e interesse próprio, mais concretamente diz para agirmos de tal maneira que possamos usar a humanidade tanto na nossa pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.

Por fim, para uma acção ser considerada realmente como “moral”, não basta que ela seja feita conforme a lei; ela deve ser feita “pela” lei. O homem tem a dignidade de se “dar às próprias leis”, e não precisa de ser influenciado pelo medo da punição ou pela esperança da recompensa para obedecer à lei; as leis que ele obedece são dadas por ele mesmo. Logo, a lei moral é “autónoma”. Então, o imperativo categórico afirma a autonomia da vontade como único princípio de todas as leis morais.

Logo, segundo isto, Kant provavelmente seria contra a eutanásia, ou mais concretamente, seguindo o exemplo verídico de Matthew Donnelly que devido ao sofrimento pelo qual estava a passar e o seu curto período de vida restante quis pôr termo à vida e para isso pediu a ajuda aos irmãos, dos quais só um acedeu ao seu pedido, Harold Donnelly. Por isso, segundo Kant, Harold Donnelly deveria ser devidamente punido pois não obedeceu a um imperativo categórico, absoluto e incondicional, “nunca devemos matar”. E deveríamos obedecer sempre porque e apenas somos seres racionais: "o homem não pode ter poder para dispor da sua vida"(4). Além disso, Kant diria que Harold Donnelly agiu “de cabeça quente”, e que a sua acção foi resultado de sentimentos ou inclinações. O que faz da acção moralmente incorrecta.

Mas há outra posição possível, de Jeremy Betham, que defendia o utilitarismo. Jeremy Bentham defendeu o “principio da maior felicidade”, segundo o qual uma acção é correcta se, e somente se, conduzir o maior número de pessoas à maior felicidade. Assim, as acções não são julgadas “em si mesmas”, mas sim pelas consequências que trariam. Bentham afirmou também que a felicidade é apenas prazer e ausência de dor, e que o montante total de felicidade produzido por uma acção é a soma total dos prazeres menos a soma total de dor de todos.

Comentando essa teoria, John Stuart Mill, outro filósofo, defensor do utilitarismo, afirmou que a felicidade é mais complexa do que Bentham pensava. Os prazeres e as dores não são todos igualmente importantes; há prazeres “superiores” a outros e mais importantes para a felicidade humana. Se todos comparam dois prazeres e concordam que o primeiro é “mais desejável e valioso” do que o segundo, o primeiro é um prazer “superior”. Prazeres superiores são prazeres como o prazer de apreciar um pôr-do-sol ou uma obra de arte, o prazer de descobrir/criar ou de partilhar afectos e conhecimentos ou de ajudar os outros. Prazeres inferiores são sensoriais ligados às necessidades físicas, como beber, comer, sexo.

John Stuart Mill afirmou também que o correcto é aquilo que promove o bem e o bem é tudo o que trouxer maior felicidade para o maior número de pessoas. Segundo esta posição, a eutanásia voluntária, poderia ser moralmente permissível, se isso trouxesse a maior felicidade e menor dor possível.

No caso verídico de Matthew Donnelly, a acção do seu irmão seria moralmente correcta se isso causasse a menor dor e a maior felicidade possível. Se Matthew Donnelly pediu para o matarem era porque a sua infelicidade era incalculável e já estava a sofrer muito. “Matá-lo ofereceria uma fuga para esse sofrimento”(5). Provavelmente ele continuar vivo iria provocar uma infelicidade e um sofrimento muito maior, tanto para o Matthew Donnelly como para os próprios familiares.

Claro que é difícil calcular a diferença da felicidade e da infelicidade. Mas, neste caso, provavelmente a infelicidade iria ser muito maior. Por isso, os utilitaristas fazem uma abordagem muito diferente da abordagem kantiana acerca deste caso, num caso como este, os utilitaristas concluem que a eutanásia pode ser moralmente correcta.

Na minha opinião, a abordagem mais correcta acerca da eutanásia é a abordagem utilitarista. Não concordo com a teoria kantiana, pois existem excepções e a ética kantiana não as tem em conta, por exemplo existe uma ordem incondicional, um dever incondicional, um imperativo categórico que nos diz que nunca devemos matar, mas há excepções. Se nos tiverem a matar, nós não nos podemos defender? Se matar trouxer melhores consequências nós deveremos ficar quietos? Se matar um assassino, implicar a sobrevivência de mil pessoas, nós mesmo assim não devemos matar? Então, temos de tirar o “nunca” e deixar ficar “não devemos matar”, pois há excepções.

Apesar disso, a ética kantiana é vazia, ou seja, a sua teoria só oferece uma forma, uma estrutura de como devemos encarar os juízos morais, mas não apresenta solução para ajudar a tomar decisões morais em situações concretas, como quando há conflitos entre deveres. Por exemplo, no caso de Matthew Donnelly, o irmão dele tinha o dever de ajudar o irmão, ser leal para com o irmão, fazer o que achava que estava correcto e tinha o suposto dever de não matar, há um conflito entre deveres. Ou seja, a ética kantiana não tem em conta excepções e não nos diz o que fazer em situações concretas.

A outra crítica que tenho a fazer à ética kantiana é que não tem em conta as consequências da acção. No caso da eutanásia, Kant é contra a eutanásia, mas em certos casos, a eutanásia traria muito melhores consequências e continuar vivo traria muita dor. Logo, as consequências por vezes são importantes. A teoria de Kant diz, que o que importa é a intenção, mas nalguns casos a intenção pode ser a melhor e as consequências as piores.

Voltando novamente ao caso de Matthew Donnelly, o que o irmão fez foi com a melhor intenção, tirou-o daquela dor inimaginável e isso trairia mais felicidade a todos, ou seja, boas consequências. Por isso, a teoria kantiana na minha opinião, não se pode aplicar a todos os casos, incluindo os da eutanásia.

A abordagem utilitarista já é diferente. No meu ponto de vista, o utilitarismo diz-nos sempre o que havemos de fazer, pois o objectivo das nossas acções, o objectivo de vivermos é alcançar a maior felicidade e a menor dor possível. E é nisso que nos devemos basear quando fazemos uma determinada acção.

Claro que esta abordagem também tem as suas críticas. Uma delas é a dificuldade de cálculo, pois é difícil medir a quantidade e/ou qualidade de felicidade, bem-estar, prazer e assim comparar as consequências prováveis dos nossos actos para as diferentes pessoas. Mas, no entanto, no caso da eutanásia não acho esta crítica crucial, pois na maioria dos casos da eutanásia, o doente em causa, quando quer pôr fim à vida, já está a sofrer de tal forma que não vale a pena continuar a viver. Além disso, não tem cura, o tempo de vida que sobra provavelmente também não é muito. Por isso, a eutanásia só iria proporcionar mais felicidade, ou, se calhar, neste caso, as palavras mais adequadas serão menos dor, tanto ao doente, como à família e amigos. Logo, neste caso a dificuldade de cálculo não é uma crítica importante.

Outra das críticas que podemos apontar é o sacrifício, mas na minha opinião, no caso da eutanásia, esta crítica também não é importante. É verdade que a ética utilitarista pode pôr em causa o nosso sentido de justiça, uma vez que não dá tanta importância à pessoa enquanto indivíduo, mas limita-se a incluir os indivíduos num cálculo de felicidade, sacrificando um a favor dos outros. Mas, no meu ponto de vista, esta crítica não se adequa a este caso. Pois, na eutanásia voluntária é o próprio doente que se propõe à morte, que pede a morte, pois já não aguenta tanto sofrimento. Isso provavelmente trará menos dor às pessoas que o rodeiam, mas também é o melhor para o próprio doente que vai ser “sacrificado”. Logo, esta crítica, no meu ponto de vista, também não se adequa a este problema.

Em suma, posso responder afirmativamente ao problema anteriormente apresentado, referindo que o fim de todas as nossas acções deve ser atingirmos a maior felicidade e a menor dor possível – as melhores consequências. Acredito que a eutanásia seja um caminho para evitar a dor e o sofrimento de pessoas em fase terminal ou sem qualidade de vida, um caminho consciente que reflecte uma escolha informada, o terminus de uma vida em que quem morre não perde o poder de ser digno até ao fim. Penso que todos temos direito à escolha, temos direito de viver, por isso também devemos ter direito à morte. A eutanásia não defende a morte, mas a escolha pela mesma por parte de quem a concebe como melhor opção ou a única. Então, por que razão na guerra é permitido as pessoas se andarem a matar umas às outras e não é permitido um doente terminal a sofrer incalculavelmente pôr fim à vida? Provavelmente, porque as pessoas em algumas situações não conseguem ser imparciais, universais e racionais. Provavelmente porque ainda não tiraram cinco minutos para pensar realmente no que será moralmente correcto. E será que o ser humano tem o direito de morrer? O ser humano é também dono da sua própria morte? Sim, eu acho que sim.

Por último, citarei Dworkin e posteriormente farei um pequeno comentário.

Em cada caso, as opiniões dividem-se. Não porque alguns desprezam valores que para os outros são fundamentais, mas, pelo contrário, porque os valores em questão encontram-se no centro da vida de todos os seres humanos e porque nenhuma pessoa pode tratá-los como triviais a ponto de aceitar que outros lhe imponham os seus pontos de vista sobre o significado desses valores. Levar alguém a morrer de uma maneira que os outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição da sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania. (DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. 2003. P.307)

Agora, para finalizar, gostaria de fazer uma alteração na última frase: Levar alguém a viver de uma maneira que os outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição de sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania. Como tivemos oportunidade de ver, depois deste trabalho, “morte”, às vezes, pode significar “viver”; e “vida”, às vezes, pode significar algo semelhante a “morrer”.
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(1) http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutan%C3%A1sia
(2) http://www.ufrgs.br/bioetica/eutantip.htm
(3) KANT, Immanuel. Foundations of the Metaphysics of Morals. New York: The Liberal Arts Press, 1959, p.39

(4) Kant, 1986, p. 148
(5) James Rachels, Elementos de Filosofia Moral (Lisboa: Gradiva, 2004)

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