domingo, 2 de maio de 2010


Lectio


«Haverá alguma ideia fundamental subjacente ao imperativo categórico que possamos aceitar, mesmo que não aceitemos a forma particular de Kant a exprimir? Penso que há (…).
(…)
A ideia fundamental está relacionada com o pensamento de que um juízo moral tem que se apoiar em boas razões – se é verdade que devemos (ou não devemos) fazer tal ou tal coisa, então tem de existir uma razão pela qual devemos (ou não devemos) fazê-la. Por exemplo, podemos pensar que não devemos atear fogos florestais porque se destruiriam bens alheios e morreriam pessoas. A inovação kantiana consiste em fazer notar que quaisquer considerações que aceitemos como razões num dado caso, temos também de aceitar como razões noutros casos. Se houver outro caso no qual se destruiriam bens alheios e morreriam pessoas, também neste caso temos de aceitar isso como razão a favor da nossa acção. De nada serve dizer que aceitamos razões algumas vezes, mas não sempre; ou que as outras pessoas devem respeitá-las e nós não. As razões morais, se são mesmo válidas, são vinculativas para todas as pessoas em todos os momentos. Isto é um requisito de consistência; e Kant tinha razão ao pensar que nenhum ser racional o pode negar.

Esta (…) ideia kantiana (…) tem uma série de implicações importantes. Implica que uma pessoa não pode encarar-se como especial de um ponto de vista moral: não pode pensar de forma consistente que tem permissão para agir de determinadas maneiras proibidas aos outros, ou que os seus interesses são mais importantes que os interesses das outras pessoas. Como assinalou um comentador, não posso afirmar que é correcto eu beber [o seu refrigerante] e depois queixar-me quando o leitor bebe o meu. A ideia implica, além disso, que há restrições racionais ao que podemos fazer: podemos querer fazer uma coisa – digamos, [beber o refrigerante] de alguém –, mas reconhecemos que não podemos consistentemente fazê-lo, porque não podemos ao mesmo tempo aceitar a implicação de alguém poder beber o nosso [refrigerante]. Se Kant não foi o primeiro a reconhecer isto, foi o primeiro a transformá-lo na pedra basilar de um sistema moral plenamente desenvolvido. Essa foi a sua grande contribuição.

Mas Kant foi ainda mais longe e afirmou que a consistência requer regras sem excepções. Não é difícil ver como a sua ideia fundamental o impeliu nessa direcção; mas esse passo não era mais necessário e tem desde então causado problemas à sua teoria. Mesmo no seio de uma estrutura kantiana, as regras não precisam de ser encaradas como absolutas. Tudo o que a ideia fundamental de Kant exige é que quando violarmos uma regra o façamos por uma razão que estivéssemos dispostos a ver aceite por todos numa situação idêntica.»

James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, trad. port. F.J. Azevedo Gonçalves (Lisboa: Gradiva, 2004) 185-6.

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